sexta-feira, 22 de maio de 2015

Não, véi.

-Então a menina acordou com aquele rapaz bem arrumado e fisicamente bonito  bem  na fente do seu rosto. Tinha certeza de que havia sido beijada.
-Ela deve ter gostado!
-Não, véi. Ela achou um abuso e começou a gritar. Pegou o telefone e ligou pra polícia, que prendeu o rapaz e salvou a menina.
-Então ela ficou com o policial que a salvou?
-Não, véi. O policial sabia que só estava  fazendo o trabalho dele e nem deu em cima dela. Ainda percebendo que ela estava abalada, recomendou um psicólogo. Que ela aceitou.
-Ah! Saquei! Então ela ficou com o psicólogo! Que bom pra ela, né?
-Não, véi. Isso seria um desastre. O psicólogo não pode ficar com a paciente, pelo código de ética. Pra preservar a terapia, a classe, e principalmente, a paciente. Na verdade, ele ajudou ela perceber que a depressão, que a fazia dormir  demais, era por ter uma personalidade assexuada e não saber como se encaixar num mundo tão devotado ao instinto sexual e suas distorções.
 A pressão dos  comportamentos sexuais, considerados normais na  nossa sociedade, a deixavam completamente deslocada. Ela  sabia  que quando outra pessoa se comportava sexualmente com ela, esperava que ela correspondesse com repulsa e atração, mas ela não sentia nem um nem outro. Não sentia nada. Expressava surpresa e um pouco de indignação. Não era  entendida por ninnguém. -"Que  exagero!"- Diziam.
 O instinto não lhe causava o nojo do trauma (ou da repetida preferência indesejada), nem a  atração da aproximação de um ideal desejado. Na  verdade, ela  achava sempre fora de ocasião, as manifestações sexuais sutis ao redor, mesmo entre as outras pessoas, pois não frequentava "locais para solteiros", nem se  colocava em situações de mal entendido, pois  simplesmente não emitia tais sinais. Estava sempre nos lugares de trabalho, diversão e aprendizado, mas nunca em situações e lugares onde fosse natural o comportamento sexual. Preferia os lugares onde isso deveria ser inadequado. Achava que assim sua falta de interesse à respeito passaria despercebida, já que todos se comportariam assim também. Que não tentariam "comer a carne" onde o ambiente era de "ganhar o pão". Mas percebia que as pessoas faziam esse jogo o tempo todo, apenas diminuindo a intensidade, nunca a frequência. Tinham uma idéia fixa, e a julgavam mal por não participar dela. Antipática.
 Quando finalmente aprendeu que era normal, apesar de rara, tranquilizou-se e viveu feliz (o máximo possível...) E nunca mais foi incomodada pela tia chata que tinha tentado arrumar um "bom partido" pra ela. O tal que a tia deixou ir ao seu quarto, e  que a beijou enquanto dormia.
-Mas e ela nem era lésbica? Nem foi abusada quando criança? Nem ia casar com ninguém? Ter filhos? Ela não tem que ter filhos??? Se ficar sozinha, ela não vai ser infeliz??? ISSO TÁ ERRADO !!! É ANTI-NATURAL!!!
 -Não , véi... NÃO.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Idioma

Sim, a música é um idioma. Sempre pode ser melhor aprendido a qualquer momento na vida.
É a língua do universo físico e imaginário.
Nem todos sabem escrevê-la, mas é maia fácil de lembrar.
Existem gagos por defeito e trauma. E também quem fale errado por estilo .
  E existe coisas na música, como qualquer idoma, que não vale apena ouvir...



terça-feira, 12 de maio de 2015

O maior artista do mundo.

Numa dessas tarde frias de maio, dois músicos andavam pelas ruas e conversavam sobre quem teria sido o maior artista de todos os tempos na música.
O mais novo falava de mitos como Miles Davis e John Coltrane, enquanto  mais velho simplesmente meneava a cabeça e ria da opinião inocente do rapaz.
-Os maiores mesmo nunca  são reconhecidos, rapaz. Estes eram grandes músicos , mas não os maiores artistas da música.
Continuaram andando até que começaram a ouvir o pior assobio do mundo.
O assobio falhava, engasgava, desafinava, colocava pausas entres notas que tornavam a música difícil até de reconhecer.  Autumn Leaves, uma antiga canção francesa que todo músico de jazz conhece. Mas como soava mal...
-Está ouvindo o assobio, rapaz? -Perguntou rindo enquanto paravam para o velho acender um cigarro.- é o melhor artista da música do mundo!
 O jovem parou e fez aquela cara de quem bateu num muro invisível.
 -É rúim!!!-Exclamou colocando o acento na vogal errada, como se faz em São gonçalo, especificamente com esta palavra, para dizer que duvida do que foi dito, Da mesma forma que se diz "Caô!", no Rio.
 -Escute a  música, ele vai repetir o tema agora.
 Quando o tema se repetiu, as  notas continuavam faltando e engasgando , mas ainda se reconhecia o tema. Como era muito bom de ouvido e memória, reconheceu que as notas que faltavam não eram as mesmas e como continuavam caminhando na direção damúsica , começou a ouvir além do assobio, sons como de alguém tomado sopa ou algo parecido, que quanto mais se aproximavam, mas rivalizava com a altura e o andameto da  própria música.
 Agora já percebia que na verdade era o som desssa estranha sucção acompanhada de algo rasgando, despedaçando, sagrando ou cuspindo algum tipo de líquido e restos, é que atrapalhava o som da música , causando interrupções bruscas e aleatórias no assobio.
 Ao virar a esquina, num lugar que parecia outro mundo, perdido no tempo e no espaço, ou até mesmo perdido do tempo e do espaço, se deparou com a imagem mais estranha de sua jovem existência:
 Um velho de longa barba e roupas muito sujas, com um chapéu razoavelmete cheio de moedas a sua frente, começava a assobiar outro tema clássico frenéticamente enquanto pessoas que evidentemente estavam ali para vê-lo se aproximavam. Também podia-se perceber que eram músicos, e alguns podiam ser reconhecidos como bem sucedidos entre a classe. Era Footprints, um tema magistral de Wayne Shorter. Todos começavam a depositar moedas na cuia, incluindo o velho jazzeiro que o levara até ali. Ele também fez o mesmo, apesar de não entender porque. O som estava afinado sim, mas era um assobio. Qualquer um poderia fazer aquilo.
 Foi quando da pastelaria na qual o velho estava encostado à porta saiu um senhor de avental engordurado e com um chapeuzinho branco na cabeça, que certamente ninguém mais usa, hoje em dia em nenhuma pastelaria do rio. O público ao vê-lo começou a gritar como se estivesse entrando um leão na arena. Todos muito exitados , como se o  homem estivesse trazendo a cereja daquele bolo todo.
 O senhor saiu com duas ou três varas de cana de açúcar descascadas, e colocou aos pés do velho, que imediatamente começou a morder e chupar a cana, babando e cuspindo bagaço, mas sem interromper a música por nem por um segundo completo! Sugava, engolia e cuspia o bagaço, ao mesmo tempo que como outro lado da bochecha fazia o assobio quase ininterrupto, mantido pela bochecha inflada , de modo que até hoje o rapaz tenta imaginar (e apenas quando está só, repetir) como era feito. Com tal façanha, o maior artista do mundo conseguia manter as pausas e prolongamentos de nota. os tons e a afinação. E ainda enchia a barriga de garapa e o chapéu de moedas.
 Todos ficavam loucos, e o chapéu ia se enchendo até a boca! E quando acabava o tema, limpava a barba, retirava um puco das moedas (pra caber mais), e começava outro clássico.
 O velho jazzeiro e o jovem ainda ficaram lá um tempo vendo outros sons e rindo de tudo que acontecia. E ele entendeu o que o velho amigo lhe dizia. Arte é sobre expressar beleza e controle de técnica o máximo possível, mas não deixar que a produção de ruídos e defeitos que o instrumento possa fazer, te faça desistir de expressar a música de um jeito que ninguém mais poderia.
 O que aquele velho assobiador fazia era único. Ninguém jamais conseguiu repetir. Acabou virando um sinônimo da impossibilidade de realizar duas tarefas de sentido contrário ao mesmo tempo. Da necessidade da escolha e da consequente perda. Ninguém contava com aquela maldita bochecha do velho...
 E mais, aprendeu que cada artista músico é como aquele velho assobiador. Tem uma vida única. Se expressa (se não estiver imitando ninguém) de uma maneira única. Os problemas da vida são as canas de cada um. O sentimento único e totalmente original, que apenas cada história de vida pode emitir em música. Que mais ninguém, além daquele indivíduo, pode fazer.
 E que ainda que o som que cada músico não seja tão espetacular de se assistir, e nem tenha um público tão seleto e conhecedor do assunto, como o velho do assobio, todo músico merece continuar tocando, se não quiser desistir. E merece colocar seu chapéu no chão, se quiser, também.

sábado, 9 de maio de 2015

amor

Amor é um sentimento sinérgico,  soma de todas as boas emoções direcionadas a outro. O ódio é inversamente semelhante.

sábado, 2 de maio de 2015

Uma estranha vegan.

O caçador estava sentado em um toco, limpando o produto de sua engenhosa e eficiente armadilha, quando a estranha menina se aproximou. Era experiente mas não a ouviu chegar.
-Boa tarde! -disse admirando seus olhos muito castanhos, quase vermelhos.-Está perdida?
Ela se abaixou mais perto e meneou a cabeça negativamente.
-Não. Moro aqui perto, na cabana à oeste.- Disse enquanto se aproximava do outro animal que estava preso, esperando o término da estripação do seu semelhante. O animal tremia e tentava se livrar da gaiola. Tinha uma das patas terrivelmente lacerada pela armadilha em que fora pego. - é nova. Meu pai mandou erguer em uma semana pra mim. Pré-fabricada.
 -Porque você está fazendo isso com eles? Vai comê-los?
 -Essas raposas porcarias? -Disse rindo, enquanto cuspia pro lado. - Não. Vou vender a pele, depois de secar. Nunca viu um casaco de raposa?
-Já, mas sou vegan, então não curto mais.
-Vegan? O que é isso? Uma religião?
-Não! Religião é entre deuses e homens. Veganismo é entre humanos e demais animais. Pra que os animais tenham mais direitos e os humanos mais compaixão.
-Ah! Então você é um daqueles ecochatos!!! EHEHEHE!!!
-Não me acho chata, apenas não concordo com sofrimento desnecessário. Já tem muito sofrimento no mundo. Veja essa raposinha, você não vai comê-la, nem precisaria comê-la já que somos todos macacos agricultores. Porque ela está sofrendo?
 -Ora , eu sou caçador. As pessoas querem vestir peles, então alguém tem que caçar. E não vejo problemas em mata  eganhar um dinheirinho com isso. -Disse enquanto limpava a faca e se levantava .
 O caçador era enorme. Vestia aquelas roupas simples e ao mesmo tempo customizadas por elementos extraídos da caça. Tinha garras e dentes como adornos nos pulsos,  pele nas botas, ossos no cabo da faca. Só de pensar que ele teria matado todo aqueles animais , ela ia sentindo cada vez mais desprezo, e não medo , por ele. Mas ainda tentava convencê-lo, pacientemente. Parecia a espera de algo. Olhava-o com frieza e calculadamente.
 Ela colocou as mãos na gaiola. O animal estranhamente não se mexia. Parecia hipnotizado por ela. E ao ser libertado deitou e estendeu o pescoço.
 -Hey! O que está fazendo? Essa raposa vale um bom dinheiro! E como você fez isso?
 -Não importa. você não vai lhe fazer mal- Disse ela, se levantando também.    
   A menina era adolescente, tinha a pele morena, mas extremamente pálida, como se nunca saísse de casa ao sol. Era magra. Aparenteva fragilidade em tudo que não fosse o olhar. E ainda assim, era atraente.
 O caçador se aproximou e soltou uma ameaça embebida em mau hálito e maldade:
-Escuta aqui, maluquinha, eu vou fazer  que quiser. Esse animal é meu. Você não devia sequer estar sozinha na floresta, já se põe o sol e isso não é lugar para uma menina indefesa e bonitinha, feito você passear.
-Na verdade não estou sozinha. Tenho uma amiga, também caçadora, que sempre está comigo. Ela está te olhando nesse momento e não deve estar gostando da sua atitude. E nesse lado da montanha o sol não bate desde cedo, por causa das outras duas montanhas do vale. Se eu tivesse medo de escuro nem saía de casa...
- Caçadora mas você não é contra caça?
-Ela caça por necessidade. Prefere animais maiores, mas se você deixar a raposa em paz, ela o deixará ir em paz, apesar do seu desrespeito comigo.
-Deixar-me ir? O que pensa que sou, Um animal? Mande -a vir aqui, que dou um jeito em vocês duas! EHEHEHEHEHEHEHEHEHEHE!
-Você realmente não entende, não é? Somos todos animais. Apenas que uns somos conscientes e outros não, e outros ainda, deveriam ser mais não são. Como você, por exemplo. Neste momento, ela precisa se alimentar, e você é o maior  animal presente. Deixe a raposa e corra, enquanto pode!
 Aquilo o assustou, mas sua ganância não o deixaria se desvincilhar da raposa. Fincou o pé.
-Apareça caçadora! É melhor aparecer ou vai ver de longe ou que vou fazer com essa menininha! Disse, se aproximando da menina.
 Foi então que os olhos dela ficaram totalmente vermelhos. Sua feições mudaram, ficando grotescas. Seus dentes se tornaram em presas enormes. Em um movimento fantástico, tomou o caçador com apenas uma das mãos e o levantou do chão de encontro a árvore mais próxima.
-Eu disse que ela estava comigo, e não perto. Ela vive em mim. Teríamos deixado você ir, se desistisse da raposa, mas você preferiu nos ver.- Disse a menina demônio com uma voz vinda diretamente do inferno, enquanto o sustentava com uma das mãos, e apontava com a outra em seu rosto. Sua mão era agora um conjunto de garras e ossos maior que qualquer coisa que ele já tivesse caçado.
 Sentindo o ar faltar e apavorado, desmaiou. A menina se abaixou sobre seu corpo , inerte mais ainda com  vida e desferiu um golpe com as garras no pescoço e outro no abdome, para que parecesse um ataque de urso, e bebeu a maior parte do sangue do caçador, deixando-o para morrer em seguida.
 Coberta de sangue, tomou a raposinha nos braços e foi andando pela floresta escura.





























































































































Continua.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

realidade

Eu me sinto esperando o mundo chegar.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Um conto sobre Longinus. (Três gritinhos e três pulinhos)

Era o dia da crucificação dos condenados e Longinus, o Centurião da Lança, como era chamado, suava em poças naquela tarde abafada de abril.
 Aquele dia já costumava ser sombrio e trazia o pior do senso de justiça deturpado de toda uma época. O som do ranger e do arrastar seus próprios instrumentos de tortura pelas ruas de pedra até o monte da caveira, somada a multidão de abutres que cercava os condenados, aquele dia era ainda mais estranho. Pois a algazarra estava misturada de gritos e choro por misericórdia, e isso  nunca aconteceu antes. O povo todo costumava apoiar as execuções unânime.
 Naquela tarde pairava uma trevosa culpa sobre os soldados, pois um dos condenados era aclamado como inocente, e se isso não fora suficiente, também diziam que descendia de um rei muito amado do povo, e os mais extremos chamavam-no filho Deus. Nunca havia sido assassinado nenhum dos três numa cruz antes. Os soldados tinham medo da má sorte que isso podia trazer. Mas o centurião estava calmo, concentrado. Seu olhar era quase o de um morto. Parecia não se importar com o que gritavam. Estava longe. Suava de cansaço, mas cumpria suas ordens: fazer os soldados conterem o povo e confirmar a execução. Os clamores não mudariam nada, é o que dizia sua expressão. Os três condenados seriam mortos, e ele garantiria isso com sua lança.
 Longinus era Capadócio e tinha fama de ter sido sanguinário mesmo antes de ser soldado.
 Trazia uma lança feita de um gládio quebrado, e somente o aspecto de sua lança já faria qualquer um tremer. Incontáveis vidas já tinham sido ceifadas por aquele objeto desde o tempo em que aquela ponta de lança ficava em sua mão esquerda, ainda em forma de espada. Fora temperada com sangue inimigo e martelada com aço estrangeiro nos campos de batalha.
 Longinus era invencível aos homens, e talvez por isso os deuses decidiram humilhá-lo.
 -Quebrou-se o gládio do centurião!-Gritou algum soldado inimigo.
 E todos ao redor se lançaram sobre ele como cães selvagens. Não morreu porque não era a hora do herói, e os heróis também as vezes são salvos por seus pares na batalha.
 Assim salvaram e levaram Longinus de volta. Ferido, pois os deuses não queriam-no morto, mas humilhado. Com o Gládio quebrado na ponta, quatro ou cinco dedos para o meio. Partido em dois.
 Dizem que foi depois disso que ele foi para Jerusalém. Não queria saber de deuses ou batalhas. Nem mesmo de seu nome. Não tinha mais o brilho do sangue nos olhos. Tornou-se chefe do cortejo dos condenados. Que acompanhava execuções e garantia que ninguém sairia vivo. Seu gládio fora reformado em uma descomunal ponta de lança, que agora dava o golpe de confirmação nos que morriam. A Lança do Destino, quem passasse por ela só tinha como destino a morte certa.
 A cada crucificação ele tomava um banho de sangue por isso. A ponta remendada da lança fazia respingar o sangue condenado sobre ele, toda execução. Não consertava nem trocava a lança. Limpava o sangue e ia pra casa assim que terminava o serviço.  E nos dias de Páscoa Judaica como aquele, tinha que se certificar de que tudo acabaria antes do fim da tarde, que era o início da festa de aleluia.
 Era sério, grave, cheio de cicatrizes. Uma delas, sobre os olhos, lhe causava uma grave doença na visão.
 Não era visto nas tavernas e nem tampouco alguém sabia seu nome verdadeiro, ou onde habitava.  Era o centurião carrasco. Sombrio. Temido como a morte. E isso era tudo que sabiam dele.
 Havia mesmo algo estranho naquela execução. Longinus não costumava sentir tamanho desprezo por nenhum condenado, mas o demonstrava por aquele coroado com espinhos. Era a única coisa que tirava o olhar de enterro do centurião naquela tarde. Quando olhava para o galileu, olhava com ódio. Cuspia no chão e dizia uma praga. Mandava que martelassem com força seus cravos. Quando levantaram as cruzes e fez-se grande silêncio, havia nos lábios de Longinus um leve sorriso, e no seu olho, uma lágrima. E estava longe.
 O nazareno gritou qualquer coisa como um chamado a seu deus, depois ao povo, depois disse algo calmo, como a seu pai. Longinus riu novamente com ódio quando ouviu a palavra pai. Falou algo sobre o paraíso com o ladrão à sua esquerda, aquele chamado Dimas. Achou absurdo,  mas como era justo com os condenados, no último momento, quando começavam a gritar pela dor e vertigem, oferecia-lhes uma mistura de vinagre e fel, que trazia de sua casa.
 Ele mesmo o oferecia em uma esponja, pendurada na lança que depois furaria os cadáveres. Assim fazia com que cada um beijasse o gládio quebrado antes de morrer.  E lhes dava alívio.
 O primeiro ladrão aceitou e abaixou a cabeça entorpecido quando o efeito se fez valer. O segundo, que era o querido da multidão, olhou-o fixamente nos olhos, recusou a poção e disse:
 -Sua esposa e seu filho estão com meu pai, e um dia tu também estarás conosco, no paraíso. (e o chamou pelo nome)
 Longinus estremeceu. Se afastou daquela cruz dando passos para trás. Nunca ninguém o vira fazer um movimento de recuo em sua vida.
 Com um brado o homem do meio desfalesceu, e no exato momento começou a cair uma forte chuva. Muitos se afastavam enquanto Longinus permanecia inerte, com sua lança na mão, olhando para a cruz.
 Ele pensava na mulher que morrera nas complicações do parto prematuro, que foi causado pela notícia de sua queda em batalha, principalmente pela visão de seu estado quando o trouxeram à casa. Ela pensou que ele morreria. Entrou em pânico e começaram as contratações. Seu filho nascera tetraplégico e morrera a dois dias atrás.
Ele pensara nisso toda aquela tarde. Ninguém sabia que ele tinha um filho, pois temia retaliações das famílias dos condenados. Sua mulher e filho eram uma parte da "humilhação dos deuses" que ninguém em Jerusalém sabia. Ele executara aquele homem com ódio de vingança. Estava se vingando de deuses e homens por toda a tarde. Se deuses existiam culpava-os, mas preferia acreditar que não existiam do que que fizeram tudo aquilo com ele, e até mesmo com seu filho inocente, que antes do tempo nasceu para humilhá-lo pelos deuses, que sofria com dores e convulsões por anos desde o nascimento. Que precisava tomar vinagre com fel.
 Tratava o homem com o desprezo de quem fingia ser filho de um dos seus carrascos imaginários. Se era filho de um deus, se vingava. Se não era, vingava o povo de um charlatão que comia e bebia de quem enganava. De todo modo, por si ou pelos homens, era um vingador.
 Foi pelo filho que ele abandonou as guerras. Sua lança remendada servia para lembrá-lo. Jurou usá-la a partir de então para justiça, pela vida de seu filho, que nunca andaria nem falaria, e que tinha os olhos da mãe. Ele jurou que aquele gládio assassino quebrado agora só mataria os condenados. Nunca mais mataria inocentes. E agora estava ali, frente ao cadáver daquele estranho homem, que sabia no que ele pensara naquela tarde toda contra si, e também do motivo da sua vingança. Mas, que antes de morrer lhe disse as palavras mais reconfortantes que ouviu em anos. Pensava que se aquele homem fora filho de um deus, nunca mais teria perdão.
 Neste momento se aproximou um soldado e lhe informou que se aproximava a hora da festa, e perguntou se deviam quebrar as pernas dos condenados para tirá-los das cruzes. Longinus fez um sinal afirmativo e disse: "Menos o do meio, pois já está morto. Eu lhe darei a confirmação, e depois podem tirá-lo."
 Aproximou-se lentamente com sua lança mortal, enquanto a chuva estiava. Num golpe preciso, atravessou o pulmão e o coração de uma só vez. E então verteu sangue e àgua sobre si. Quando viu que o sangue tinha virado  água exclamou "Verdadeiramente, este homem era filho de Deus!". E neste momento seus olhos ficaram curados pelo sangue, sentiu o fim da irritação neles e voltou a enxergar com perfeição como quando era jovem. Entendeu isso como um perdão do Deus daquele condenado, o Deus à quem matara o filho. Comoveu-se.
 Longinus com sua lança, confirmou não apenas a morte, mas o único milagre do filho de Deus, enquanto morto.
 E daí seguiu para casa, para se tornar mártir de Cristo, e também para encontrar objetos perdidos, em troca de três gritinhos e três pulinhos.
 São Longuinho.