domingo, 6 de agosto de 2017

O socialite e a moradora de rua.

Descia corrigindo um pelo da sobrancelha , no espelho da porta, sob a luz muitas vezes refletida da luminária do elevador social panorâmico. Mesmo tendo as vista do mar, às suas costas, Carlos Alberto ignorava estar sendo visto, como uma divindade descendo de costas aos humanos, enquanto passava o mindinho repetidas vezes sobre o olho direito.
 Desapareceu ao se virar de frente, enquanto o aparelho locomotor vertical mergulhava no saguão do aparte hotel. O valet já esta a postos quando chega a porta, mas num gesto diferente do usual, ele olha para a esquerda antes de andar até o meio fio, e tendo boa visão, alcança o fim do quarteirão, e sentada na esquina, uma pessoa, meio indefinida, com um cachorro ao lado, pedindo dinheiro e tentando esconder a pequena garrafa de quinhentos mililitros de aguardente sob uma pequena manta.
Faz então um sinal para que o valet aguarde um pouco, e caminha até o sem teto, aparentemente na intenção de lhe fazer um dos costumeiros disparates em forma de caridade, em um misto de superstição, ritual social, ou atenção a um apelo involuntário há muito abandonado pela maioria e ignorado propositalmente pelos que ainda o percebem, mas julgam tê-lo superado. A compaixão pelos "vencidos". Já ia procurando trocados nos bolsos menores do paletó, quando ao chegar perto sofreu um golpe inesperado.
A moradora de rua era jovem. A maioria nem sequer percebia isso, pois ela andava muito suja e seus cabelos estavam tão maltratados, que parecia envelhecida a primeira vista. E como as pessoas lhe negavam até mesmo uma primeira vista completa, não era vista, aquela juventude tão bem camuflada de ruínas. Mas era jovem, pois quando o rapaz rico e bem vestido, em sapatos italianos e perfume francês, se aproximou, um reflexo da luz do pôr do sol iluminou o suor de sua pele escura, por entre uma camada de grossa poeira grudada, limpa por uma lágrima , ou gota de suor , por estar ali a tarde inteira, revelando aquela curva que a bochecha da gente faz quando a gente tem menos de vinte tantos anos. Era jovem. Carlito, como chamavam o socialite, viu aquela curva de sorriso no rosto, e sem querer parou por um segundo, admirando o brilho daquela pele molhada sob o sol.
 Lentamente, comparado ao ritmo da cidade, ele abriu o foco da visão e se deparou com o olhar vívido de Eliane. Que sorria, pela novidade. Aquele olhão caramelo , por trás dos óculos de aro fino, olhando pro rosto dela, tampando o sol e dando um certo conforto pra ver as cores do céu por trás do homão que tinha uma das mãos no bolso, e outra por fora do paletó segurando. Ficou calma, pois viu que os olhos do doador do momento estavam surpreendentemente desarmados. Não era como os outros, que pareciam ter nojo, medo de pegar má sorte, ou ódio mesmo. Este estava desarmado, de uma maneira há muito tempo esquecida por ela. Era paquera.
 Quando percebeu que ela sorria e olhava de volta, com olhos pretos e tão grandes e vivos como aves no céu claro, ficou sem graça, meio tímido. Se fosse mais claro, teria ficado vermelho, mas era negro, um pouquinho menos escuro que ela, então os gestos é que denunciavam o quanto estava estranhamente sem jeito. Resolveu acelerar a esmola. Pegando a primeira nota que estava no bolso, por sorte uma alta, e colocou na toca de lã, muito suja também, que estava no chão.
 Mas Ela, como chamavam os poucos que sabiam seu nome ali, pegou a nota, e espantando o cachorro alcançou uma pasta, de onde tirou caneta e papel, onde escreveu:
 Seu dinheiro não foi o ingresso para o meu show particular.
 Se gostou pode ver mais, olhe em volta, escolha um lugar.
 Sente-se, se você também sentir vontade de ficar.
 Pode parecer relento, mas meu castelo de talento,
 É mais que o suficiente para dos dois ser um lar.
Mas se for mais importante seu carro, la´parado,
                                                                  com motor ligado e motorista empertigado.
Ou todo mundo que se recordar,
Lembre-se que foi nos meus olhos,
Negros, cansados e felizes,
Com mais escuros matizes.
Que você teve seu breve momento de despertar.
E quando quiser, se tanto puder, pode voltar.
                                 Eliana, poeta sem teto.
 Mas ele nem soube que tomara uma decisão quando dobrou o papel e pôs no bolso, apressado.
 Virou as costas e correu até o carro preto. Outros veículos buzinavam alto, como que gritando a quebra de tabu. Mas o carro seguiu. A moça ficou rindo. Rindo com o gosto e a cachaça escondida. Rindo do rapaz "menos preto" menos pobre e menos livre, apaixonado por um único segundo em que se soltou da hipnose de todos os sentidos ordinários e enganáveis. Um segundo verdadeiro, infinito, rápido, lento, sem tempo, ou consequência.
 Ele tentou olhar pelo retrovisor, um imenso ônibus 129 dizia não. Que diabo!
 Seguiu o fluxo na fila imensa de acorrentados. Suspirou. Olhou no retrovisor.
- Maldito pelo de sobrancelha ...




























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