sábado, 3 de outubro de 2015

O peso.

-Como estamos?- Perguntou o capitão ao imediato.
-Estamos vencendo, mas arrastando um pouco por causa do Peso.
-Diabos!- Praguejou - Aquele porco só quer comer dormir e pensar!!! Não jejua, medita pouco, e não se mexe !!! O que fazer com "isso"?
Peso era o marujo mais raso da nave. No sistema de disciplina que era aquele lugar, o mérito e posto era dado por cumprir regiamente estatutos e  procedimentos, que levam ao exercício e à dieta. Causando uma tripulação de pessoas fortes e leves. O barco voava mais rápido, e como todos estavam sempre em seu lugar também havia um equilíbrio natural no navio.
Todos, menos o Peso. Peso havia recebido esse nome ao embarcar porque estava um pouco acima do peso normal, mas por causa da ordem local, todos achavam que ele perderia peso logo, e seria útil, pois era muito inteligente. Mas a cada dia que passava, Peso ao invés de assimilar o movimento e fluir com ele, parava em cada seção do navio onde ia. Parava, conversava, comia, pedia licença e tirava um cochilo. Todos gostavam de conversar com ele, pois ele realmente gostava de aprender um pouco do que cada um estava fazendo, e falar do que ele fazia, e de coisas boas que tinha visto no resto do navio. Sua intenção era pura, e fazia sorrir a todos com seus pensamentos felizes a respeito da nave , e da realidade.
 O problema é que isso fazia que a seção do navio onde ele estivesse, perdesse um pouco do equilíbrio, pela lentidão que se verificava, quando trabalhavam conversando com o Peso, e segundo os supersticiosos, por causa do peso de sua barriga. Após muitas vezes ser mudado de seção , e se verificar que onde estivesse, o Peso faria uma diferença negativa, construíram num pequeno escaler, um cômodo separado da nave, e içado por uma corda. Que navegava se arrastando nas nuvens de aurora boreal\austral que cobriam o limite da linha de navegação espacial.
 Peso não ligava, e até gostava dali. O mar de nuvens de aurora de perto era lindo, e seu pequeno barco deixava um rastro de vazio e escuridão em sua superfície. Os supersticiosos achavam aquilo horrível, pois consideravam que olhar muito para baixo do limite das nuvens podia causar um naufrágio. E uma aterrissagem forçada é tudo que ninguém quer nem pensar numa nave espacial. Mesmo a lembrança da sensação de gravidade de reentrada deixava os mais sensíveis enjoados e com medo, e era sempre um momento crítico. Mas Peso não era supersticioso, o que também era uma característica única que possuía naquela tripulação , e até gostava de ficar horas observando as luzes artificiais, lá embaixo, por horas as fio, em suas muitas noites solitárias. Vivia o claustro, mas não sofria a pena. Antes a desfrutava como se fosse uma grande sorte, e sorria, como sempre.
 Não se lembrava do porque subira naquele navio. O que o atraíra naquele universo tão diferente de si. Mas não sentia pena de si mesmo por estar ali. Não tentava fugir, nem se adaptar ao  sistema da nave, visando subir de posto até o observatório, e depois os postos de comando como todos faziam. Parecia intuir que aquilo tudo era vão, mesmo sem pensar a respeito.
_ Como está o segundo colocado?- Quis saber o capitão.
-Continua girando sem parar para a direita! Como um parafuso!  Por baixo e por cima das nuvens , como um louco! Continua atrás de nós e a velocidade constante, mas girando e sem se aproximar... -Disse o imediato, enquanto olhava pela luneta.
_Maldito Peso! Se não fosse por ele já teríamos perdido eles de vista!!!
-Mas porque o movimento em parafuso?
-Ah, Imediato, vai ver navegam assim mesmo... -E puseram-se a rir.
 -Peso não acreditava nessa hipótese. Nem se achava tão mais pesado,  nem acreditava que o peso de um homem tiraria a velocidade do navio. Apenas o peso deveria ser melhor dividido. Talvez se os superiores não fizessem tanta questão de serem magros, e não impusessem essa magreza a todos, o navio ganharia lastro, e navegando mais perto das nuvens de aurora, com menos arrasto entre a atmosfera e o vento espacial que circundava o planeta, chegaria mais rápido ao destino, ou ao Prêmio, que era como o capitão chamava o destino final. Pra ele, e consequentemente para todos em seu comando, estavam em uma competição, mas não para o Peso. Peso sabia dessa linha de estabilidade no limiar das nuvens de aurora boreau\austral, por já ter ido , tanto até o observatório, quanto a linha mais baixa da nave, e sentira a turbulência diferente que havia em cada nível, descobrindo, ao ser descido a linha das nuvens, que ali a turbulência é menor. Mas ninguém queria saber de navegar tão perto do abismo. Pareciam não ter confiança na nave, e nem neles mesmos.
_Chega!!! Vamos jogar o Peso na direção da outra nave!!! -Disse raivosamente o capitão, após sua meditação.
O imediato não ficou confortável com isso. Ele também já tinha conversado com o peso. Suas idéias eram diferentes, mas ele o sentia no mesmo nível. Também ele, apesar das superstições, gostava do marujo barrigudo.
Enquanto descia os níveis para cumprir a ordem, lembrava-se do porquê Peso estava nessa situação, e se sentia um pouco culpado.
Peso havia subido ao navio na última vez que este esteve em terra, esta mais ou menos bem vestido, mas sujo. E apesar da barriga, dizia ter fome e estava sem memória. Quando o viu, o capitão riu, pois disse que ele se parecia com alguém que ele não se lembrava, e disse que lhe dessem uma chance, começando de baixo, como todos e ele mesmo começaram naquele navio. Mas Peso não ficou marinheiro muito tempo. Em toda seção em que o colocavam , aprendia rápido o trabalho e era promovido,chegando rapidamente ao observatório, na parte alta da nave, e passando a aspirante de postos de comando.
Um dia estava conversando com o imediato, quando uma de suas idéias chamou atenção por ser muito superior. Chamou este o comandante então para ouvi-la, e então Peso passou a explicar-lhes sobre o peso da nave, e que como estavam confiando demais no equilíbrio lateral, mas não no vertical da nave. E que a obsessão com leveza poderia levar a nave a sair da órbita. O que seria ruim, já que a nave era de circunavegação , e não interplanetária. Que deveriam pesar um pouco mais, e navegar mais perto da linha.
 Mas o capitão ficou muito ofendido, pois ele mesmo é que havia mudado os parâmetros do sistema do navio ao assumir, e inserido o paradigma corporal no mesmo, pensando que mais leveza era fundamental. Ora, alterar o sistema era prerrogativa exclusiva do capitão, e ele ao invés de tentar aproveitar a crítica, entendeu como ousadia ofensiva.
A partir daí, todas as falhas de disciplina do Peso, que antes eram toleradas, passaram a ser anotadas , por ordem do capitão. E por deméritos, Peso foi sendo rebaixado de volta até marinheiro, e por fim até o escaler. Na verdade, o capitão não sabia que Peso era sempre muito gentil quando criticava o que quer que fosse, e não apenas de aparência, mas de intenção em ajudar e melhorar aquilo que estivesse criticando. E por isso temia que se ele continuasse conversando com todos, acabaria tendo que lidar com um motim. Como se tormou um mascote para a tripulação, também não o despedia do navio do navio, novamente temendo pelo motim.
E agora estava lá o imediato, na parte mais baixa da nave, olhando mais abaixo ainda, pela escotilha, o pequeno escaler rebocado. A corda que passava pela sua frente. A faca na mão. Pegou o comunicador na parede.
-Se ao menos eu não tivesse chamado o capitão para ouvi-lo...- pensou antes de falar.
-Diga ao timoneiro que incline a nave para a esquerda 15 graus.
-15 graus, senhor!
Calculou a distância e o tempo , como só os superiores sabem fazer, calculou o impacto na "nave parafuso", e cortou a corda. Esperou um pouco e viu a imensa nave sair das nuvens girando. Por cima e por baixo, por cima e por baixo, por cima e por baixo, como loucos... Viu o impacto, sem avarias na nave "adversária". Estranhamente, recolherem o escaler. E subiu para dar o pronto ao capitão.
A cada nível que subia, podia ver nas faces, mesmo disfarçadas pela calma e a leveza da meditação, o descontentamento com o destino dado ao Peso. Mas percebia também que a atitude final gerara ainda mais leveza para a nave. Mas sabia que não era a falta do peso do Peso, mas a falta do mal e da injustiça que estava naquela nave , enquanto trataram-no de maneira totalmente assimétrica ao que merecia.
 Ao chegar no passadiço , tudo estava em polvorosa!
-Senhor, a nave adversária parou de girar e está se aproximando!- Relatou o timoneiro.
-Infernos! -Bradou o capitão.- Vamos ser abordados!
-Acho que não capitão- Disse o imediato, olhando a luneta.- Eles estão vindo por baixo, e pela velocidade, vão nos ultrapassar por baixo mesmo.
Pela parte traseira, todos podiam ver agora a imensa nave que se aproximava e passava por baixo deles, como se fosse uma baleia sob uma prancha de surfe. Numa manobra perfeita, virou para a direita de lado, e diminuiu a velocidade quando as cabines ficaram frente a frente.
-Senhor, estão apontando um canhão.
-E agora? Como enfrentaremos tamanho problema?- Disse um dos oficiais da ponte de comando.
-É um canhão de mensagem senhor. Devo aceitá-la?
-Imediatamente, tenente!-Disse o capitão ao oficial de comunicações.
Uma pequena rede com forma de alvo foi então liberada. Recebendo o tiro certeiro do canhão de mensagens. Ao ser trazida, revelou o seguinte texto.
"Senhor capitão da nave,
Como pode ver, minha nave não é lenta e nem navega parafuseando. Apenas que nosso gerador de gravidade, assim como nosso sistema de patentes, é baseado na distribuição de peso da tripulação, e ficou sem equilíbrio quando perdemos um homem no último porto terrestre. Mas como é central, não nos impediu de continuar, nem nos causa nenhum incômodo ao navegar. Requerendo apenas um pouco de atenção e cálculos a mais para ajuste. Como não é comum navegar sem um dos tripulantes, não pilotamos bem nesse modo. Sim, aqui todos contribuem na pilotagem, com vontade e equilíbrio (e felizes, já que a felicidade é nosso maior bem, e até mesmo a substância da nossa essência e nave).
 Também não havia aceito seu convite para uma corrida ao próximo porto (que na verdade é de onde havíamos vindo) como havia pensado, nós nunca competimos. Não apreciamos a competição, mas sim as demonstrações.
 Apenas navegávamos após si, por termos descoberto, logo após sua partida, que haviam recebido nosso homem, por engano, na tripulação de sua nau.
 Ele havia descido de bordo para uma promenade pelo porto, e ao escorregar e bater a cabeça ficou machucado. Ora, o homem que estava com ele não conseguia levantá-lo(já que é um dos mais pesados da nave), e como aquele estava inconsciente, correu este até nós para buscar ajuda, mas ele deve ter se levantado, e como estava sem memória, deve ter vagado um por alguns dias sem comer na cidade, até subir ao seu navio.
Como deve ter percebido, monitoramos todas as conversas de sua nave na perseguição, por segurança. Sentimos muito que não o tenham tratado bem, e da decisão final que o senhor tomou a respeito dele, mas compreendemos as dificuldades de compreensão que seu paradigma tem com pessoas como nós.
Seu nome é Luz do Riso, e não Peso, apesar de que a intensidade do riso tenha realmente peso para nós (não é irônico?).
Apesar de ele estar mais magro, e de não se lembrar quem é, continua sendo ele mesmo, e equilibrou a nossa nave no momento em que foi resgatado , pois essa é a especialidade dele, e só agora conseguimos estabilizar os controles, para que pudéssemos nos aproximar sem risco de colisão com sua nave.Agradecemos por terem-no alimentado e cuidado, enfim.
Agora podemos separar nossas rotas.
 Tenham uma boa viagem!
Atenciosamente,
Alegria Interna do Riso, Capitão da Nave Mundofeliz.
P.s. Melhor verificar as previsões a respeito da gravidade fornecidos pelo Sr. Luz. Segundo seus cálculo, você terão uma breve crise e precisarão de ajuda''
 Olhando para aquela mensagem, o capitão se lembrava primeiro dia em que avistou aquela nave. Estavam os dois em suas pontes de comando, e O capitão Alegria estava com uma pequena parte de sua tripulação concluindo algum tipo de ritual, ou solenidade, parecia algo como um hasteamento de bandeira, o que estranhamente aquela nave não possuía, trazendo apenas a bandeira do planeta e a da federação espaço-maritima internacional. Eles se colocavam de frente para o pôr do sol, ficavam em silêncio, e depois riam todos alto.
 O capitão observava tudo de sua luneta, e achava aquilo tudo estranho e diferente de qualquer solenidade que já tinha visto.
-Onde já se viu terminar uma solenidade rindo? Seria uma festa de aniversário? Uma música mental de parabéns? -Pensava , enquanto continuava espiando.
 Não dava pra ver o exato tamanho da nave. Apenas que era grande. Pensou então que ela devia ser lenta, pois não se encaixava nos padrões que ele havia estudado, deveria ser fraca em equilíbrio, não podendo alcançar grandes velocidades, fosse em mar ou no espaço. E certamente não conseguiria navegar no vento solar. Mandou um meca-pombo com uma mensagem propondo uma corrida.
 O capitão alegria ainda estava rindo quando recebeu a mensagem. O meca-pombo ficava voando perto da pessoa até ela estender a mão, e então jogava a mensagem que se abria ao tocar na palma da mão aberta. O capitão leu a mensagem, e fez um esforço para não se ofender, pois de onde vinha, as competições não eram muito apreciadas. Apesar de lá todos quererem ser melhores cada vez mais no que faziam, tinham naturalmente o ímpeto de querer que o outro fosse ainda melhor que si, e preferiam ver demonstrações que competir. Na competição, não conseguiam comemorar a derrota de um adversário. Não riam com a mesma intensidade, quando a alegria não era completa. Competição não fazia sucesso lá. Escreveu de volta um "Não, muito grato. Boa viagem." E colocou um selfie com parte do comando, na verdade desejando que nunca mais se vissem. Educadamente, nem sequer comentou a gafe do colega aos demais. Disse que havia apenas mandado um olá, o capitão daquela pequena nave.
 Fez um aceno com a mão e mandou a mensagem de volta. Mensagem que o dono do pombo jamais recebeu, pois foi chamado pelo seu imediato a comparecer em uma solenidade de despedida de um marujo.
 A pequena nave não tinha um grande número de tripulantes, eram poucos os níveis de suas cobertas abaixo. E também não tinha um número de tripulação fixa, ou mesmo uma tripulação fixa, tendo mudado muitas vezes de dono, de capitão, e até mesmo de bandeira. Sendo seu capitão atual, como todos os que vieram antes dele, mesmo antes da nave adotar a última bandeira, um antigo marinheiro de primeira classe. Quando alguém não se adaptava à disciplina era mandado embora, e um novo marujo subia a bordo. Agora então, com a regra de magreza e leveza, muitos haviam sido despedidos, ou pediam para sair, por temer morrer de desnutrição. Faltavam muitos marinheiros nos níveis de baixo, e os de cima não estavam nada bem. Tudo porque o capitão mudou a bandeira do navio, segundo os supersticiosos. Mas na regra da magreza, ninguém queria mexer. Pois todos haviam ficado fascinados com o ideal de ser leve e magro. Passou inclusive a ser mais importante que ser sábio, ainda que não fosse admitido.
 O pombo deveria ter ficado rodando na meca-pombo, quando não encontrava a pessoa no mesmo lugar, não procurava, mas pousava e esperava a pessoa voltar . E foi lá que ficou até agora, pois o capitão não tinha muito o hábito de usá-lo.
-Capitão, está acontecendo algum problema com o casco da nave, estamos deixando o nível de segurança espaço-terrestre e indo para o espaço exterior. A corrente de vento solar está nos levantando!-Alertou o navegador.
Lentamente, começaram a sentir a aumentar a turbulência. Se a nave deixasse a gravidade terrestre, dificilmente conseguiria voltar, e teria que pedir socorro a armada, o que no mínimo seria uma grande vergonha para todos. O capitão parecia não estar ali ainda. Caminhava para a janela de onde havia enviado o meca-pombo, que ao detectá-lo vou sobre sua cabeça. E ao ver sua mão aberta recebeu a mensagem.
 -Outra mensagem, senhor! -Disse o tenente.
-Receba! =Disse o capitão olhando para o selfie do colega, e a mensagem.
Ao abrir a nova mensagem, havia um selfie do Sr. Luz sorrindo, e estava escrito:
"Senhor capitão,
Estou me lembrando pouco a pouco de quem sou. Não se preocupe não guardamos mágoas de onde viemos. E com o pouco que eu já me lembro vou ajudá-los a descer para a segurança. Fique tranquilo, sou especialista em gravidade"
 Pegou a selfie e comparou com a que não recebera "no início da corrida" E estava lá o Sr Luz do Riso, diferente, pelo peso, mas o mesmo sorriso, acenando ao lado do Capitão Alegria. E terminou de ler na mensagem.
"Atenciosamente,
Sr Alergia do Riso, Capitão-imediato.
 Enquanto o capitão chorava de alívio e vergonha, e talvez um pouco de raiva, a nave Mundofeliz girou sobre o seu próprio eixo, e apontando para o exterior, aumentou a potência do repulsor de gravidade, e empurrou a pequena nave de volta para a gravidade da Terra, perto do mar de nuvens aurora. Içou a bandeira da Federação Espacial Intergaláctica, que não era usada na terra, por esta estar filiada uma outra federação, que não era inimiga, podendo manter comércio na federação de comércio , e também contato com todos, apenas não influenciando no desenrolar da política dos planetas da federação intergaláctica local, nem hasteando sua bandeira em solo nessas ocasiões.
 Saindo da influência da gravidade, rumou em direção ao espaço profundo, enquanto a gargalhada do Sr. Luz era ouvida por toda nave Mundofeliz, aumentando a felicidade de todos e a potência da nave. E foram felizes como sempre.
 O capitão, ao chegar no seu destino, resignou ao posto, se auto-rebaixando a marinheiro, para aprender de novo. E aboliu a regra da magreza/leveza, o que a tripulação toda comemorou, mesmo sabendo que as aparências mudariam.
 E esta foi a primeira vez que um marinheiro , que na verdade era imediato de outra tripulação mudou o paradigma de um navio inteiro, e para melhor. Quem sabe algum dia, também eles adotasse o paradigma Mundofeliz. Mas já era um começo.

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