quinta-feira, 21 de abril de 2016

O barbeiro intolerante.

Finalizou o corte, passando um pouco mais de brilhantina na cabeça do cliente. Deslizou seus dedos pela calva que invadia o alto da nuca. Alí, era complicado, por estar com um cabelo remanescente e rebelde, que não abaixava, ficando como um espeto para o alto.
Tornou para o cliente que olhava sorridente  o novo penteado semi finalizado, e disse "que cabelo 'difícil', hein?". Ao que ouviu "É de nascença. Este sempre fica apontando pra cima. É diferente dos outros. Gosto dele. Pode deixar ele aí..."
Mas não o barbeiro era perfeccionista. Tirou a navalha do avental, e com um movimento, ZÁZ! Cortou a maior parte do fio rebelde, fazendo um semi-círculo de cento e oitenta graus com a lâmina reluzente. Que fez até um assovio.
 O cliente ficou um tanto assustado, debaixo daquela coberta,com um furo para cabeça e para as mãos, que os barbeiros usam para proteger-nos dos nossos próprios cabelos. Mas continuava sorrindo, pois gostara mesmo do corte. Não se moveu.
O barbeiro então se aproximou do cocuruto semi calvo, e viu que além daquela falha genética de cabelo, ao seu ver inaceitável, além de arruinar o penteado que tinha engendrado e executado, não se rendia a navalha ordinária. "Era um redemoinho, aí. De nascença. -Falou novamente o cliente- Aí eu usei muito boné e caiu tudo. Agora só tem esse cabelo. Sempre atrapalha, mesmo." Continuava sorrindo com todos os dentes.
 O barbeiro então passou a mão por trás da camisa e tirou uma navalha maior. Algo como um tipo de troféu compensador. Tinha ouro em folha, na lâmina. Fez o mesmo movimento, mas agora pelo outro lado. A navalha agora parecia uma foice rasante sobre a cabeça do cliente. "FVWOOOUNN"  E no último milimetro da pele que recobre o crânio, acertou um naquinho de carne do cliente. fazendo uma gota de sangue tocar as paredes do recinto.
As cadeiras vermelhas da barbearia, neste momento pareciam ganhar vida devido ao contraste com as pares brancas, agora com o sangue entre os espelhos.
 O cliente agora estava trêmulo, travado, com as mão agarradas nos braços da cadeira. sentia o sangue verter como um filete pelo canto do penteado tão legal, que ele havia gostado tanto. Parou de rir.
 Com a voz trêmula olhou para o barbeiro, pelo espelho. E com olhos arregalados perguntou se ele podia dar um jeito no corte pra ele, pra não estragar tomando pontos no hospital. "Talvez só uma Áqua Velva , e uma pequena pressão?" E tentou sorrir de novo.
 O barbeiro tirou um grande lenço do bolso da calça , e colocando sobre o ferimento pediu para o cliente segurar pra ele um pouco. O lenço, caído no rosto , também fazia que o cliente não visse quanto sangue estava escorrendo. Mas ouviu o barbeiro abrindo e fechando a porta do armário, atrás de si, mais perto dos fundos, e voltar em seguida.
 Tirou o pano, e o cliente pode então ver que estava tudo bem. Pelo espelho, o sério barbeiro olhava para ferida. Um pequeno círculo vermelho no alto da calva clara. Não se sabe porque, mas o barbeiro teimava em ver o cabelo , ou a raiz, ou a alma daquele cabelo preto, espetado pra cima, saindo do sangue.
 Deu um passo para trás e pegou um machado de prata com cabo de cerejeira, que havia acabado de encostar silenciosamente na parede. Afiado como a língua do mais hábil orador. E "tchufe"! Lá se ia a cabeça do cliente voando! E caindo no chão da tradicional barbearia. Com a cara do cliente ainda fazendo um semi sorriso assustado. Como se ainda olhasse para seu penteado legal. Imaginando o preço barato que pagaria , já que o barbeiro o havia ferido. "Vou pedir desconto, pensava".
 Encostou, o barbeiro , o machado na parede, e ao tirar a mão revelou a suástica entalhada no cabo. Passou a mão pelo cabelo loiro escovinha, enquanto olhava seus próprios olhos azuis, arregalados e injetados de sangue, no espelho. "Malditos mestiços!"- praguejou- "redemoinho é o caralho!" , ainda mais baixo que a primeira frase.
 Foi até porta. Trancou e virou a placa de "Fechado". E foi varrer sua bagunça para os fundos. Pensava meio baixo , mas alto o bastante pra se ouvir, na mesma altura da vassoura:
 "O cara veio na minha barbearia, fingindo ser branco pra ganhar um penteado legal, e pagar menos, com aquele cabelo ruim ainda." "Depois me chamam de barbeiro intolerante..." "Eu tenho direito de ter minha opinião, e defender minha família , minha raça , e minhas ideias, ainda mais dentro do meu próprio estabelecimento."
 O cliente sem cabeça não havia percebido, ou ignorara de propósito mesmo, que todos os cliente sentados eram 'mais brancos' que ele, e tinham tatuagens nazistas em outro idioma. E se tudo isso fosse preconceito inverso, deixaram claro que não, quando se levantaram todos juntos e saíram , meramente por perceber que o cabelo do cliente que acabara de entrar, era um pouco crespo atrás. Ele entrara ali, justamente para cortar aquele cabelo de preto que ele tinha na cabeça abaixo da calva, que ficava antes da parte do cabelo que era 'bom'. Mas as vezes, o preconceito torna o preconceituoso em sua própria vítima.
 A barbearia e o barbeiro intolerante, continuam muito bem, e o machado continua no armário da vassouras. Se você também for mestiço ( eu eu acho difícil não ser ), aprenda a olhar por onde anda , se amar, e fazer denúncias. Mas principalmente. Você não precisa andar sozinho em ambientes hostis e intolerantes. Peça por ajuda.

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