quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Doping

 

  Fast lane era seu codinome. Nas pistas imbatível. Corria como se fosse instigado pelo próprio Hermes a isso. Batera todos os recordes que encontrou até aquele dia.
  Estava concentrado e olhava a linha de chegada. Seriam cem metros para mais um limite. Ouviu o tiro pirotécnico e lançou seu corpo à frente.
  Sentia seu coração bater com cada passada, fazendo um ritmo de suas batidas.
  O horizonte trêmulo estava lá, mas como sempre, agora era percebido apenas com referência de direção, a imagem não importava. Tinha que sentir o toque no chão e reagir corretamente à gravidade, e com equilíbrio, em relação a tal força, à musculatura e suas contrações e relaxamentos.
  Cruzou a linha.
  Venceu, e desta vez não só bateu o recorde, fez isso com mais de um segundo e meio de tempo a menos.
  Após todas as comemorações, estava como sempre descansando e curtindo com os amigos quando o telefone tocou.
  Era seu técnico :
  -Tenho uma péssima notícia. Seu recorde foi cassado por doping.
  Seu coração bateu na menor velocidade que já fizera. Sentou-se sem saber o que fazer. Parecia que seu mundo caía.
  -Como assim doping? Nunca fumei um cigarro!
  Lembrou-se de que naquele dia tinha tomado um chá com um amigo, que havia voltado de uma viagem a Bolívia, que se sentiu meio estranho na hora, mas será que foi isso que deu o resultado?
  Sua mente teve então um brilho que se manifestou no seu olhar. Por apenas um momento, toda ética desportiva e honra de ser limpo cedeu ao seu objetivo todos esses anos: Ser mais rápido. Mais rápido do que ontem, mais que a última corrida. Que o último tempo. Que o último recorde.
  Pensou que se tomasse doping, sendo o mais veloz do mundo, poderia alcançar resultados que durariam por décadas. Sem perceber já estava convencido de seu próximo passo.
  Entrou na sala apertada cheia de repórteres. Era o gabinete do comitê olímpico, e seria a última vez em sua vida que veria aquela sala.
  O mesmo lugar em que antes foi fotografado junto a prefeitos e ministros de esportes para receber medalhas.
  Tinha em seu peito todas as que ganhara em sua vida. Daria pra fazer uma armadura com tanto metal.
  Ao chegar até a mesa do diretor, tirou as medalhas do pescoço. E virando-se para os repórteres vociferou:
  -Presei muito essas medalhas por toda minha vida, mas elas foram apenas frutos secundários do que eu buscava. Igualmente, celebrei e comemorei cada vitória em competições, mas também nunca corri pensando em vencer o que ou quem quer que fosse,
senão o meu próprio tempo anterior. Minha suspensão por doping é justa, mesmo sem saber eu tomei tal substância. E por isso estabeleci uma marca que será minha melhor até ser quebrada. Portanto, tenho um novo objetivo, ser novamente mais rápido. Agora não mais importando por que meios. Se o doping me tornou mais rápido acidentalmente, agora ele assim me fará intencionalmente, pois me submeterei a qualquer doping que me faça mais veloz! 
  E em seguida deixou a sala.
  As manchetes do jornal, no dia seguinte, mostravam as fotos do ídolo do esporte daquela cidade tirando suas medalhas, com a manchete:
  'Corredor assume doping'
  "-quero ser mais rápido!"
  Ao acordar deparou com um estranho ao lado de sua cama.
  -Bom dia. Disse o homem.
  -Quem é você?
  -No momento eu sou seu futuro.
  -como assim?
  -Sou o único treinador desse país que treina dopados.
  -Se quer mesmo ter resultados com doping sou a pessoa pra te treinar.
  -Como assim? Por que?
  -Porque sou técnico, ex corredor e principalmente por que sou farmacêutico.
  E com essa frase os dois caíram na gargalhada. Enquanto apertavam as mãos firmando o acordo.
  Não pôde evitar de pensar em meio de toda aquela alegria, que quando se vende a alma,
realmente, tudo que você quer a aparece, como em todas as lenda que ouviu desde a sua infância, sobre seus próprios ídolos. Qual seria o preço que pagaria por sua alma?
  Ao sair do banho Coatch, como era chamado o técnico, estava na sala já com sua mala pronta na mão, e do lado a mãe de fast chorava.
  -Que significa isso? Perguntou abraçando a mãe. Meio ainda que chorando, sua mãe lhe  explicou que, por causa da repercussão da notícia, haviam lhe expedido um mandato de prisão por apologia. 
  -Já havia previsto isso, vamos logo , não temos muito tempo.
  Abraçou sua mãe como se nunca mais fosse vê-la e saiu.Mal virou a esquina e ouviu de longe o som da polícia. 
  Já deviam estar na porta de sua casa. Sentiu vergonha por sua mãe ter que mentir a polícia para lhe deixar fugir, ela sempre lhe pediu para dizer a verdade.
  Após muitas horas de calada viagem, chegaram numa fazenda. Ao descer foi seguindo o técnico e contornando a casa. 
  A fazenda era muito bem cuidada. Tinha cavalos num cercado e gado pelo prado. Um pequeno riacho corria ao longe e fazia rodar um moinho, numa daquelas construções que pareciam saídas de um livro de outro tempo.
  Foi então que viu a pista. Linda.
  -Quase profissional , pensou.
  Coatch reparou no brilho de seus olhos. Ao contemplar a pista seu olhar havia mudado completamente. Todos os problemas e reviravoltas daqueles dias simplesmente sumiram de sua cabeça. Estava nitidamente olhando a pista como se fosse seu bem mais precioso. Sua própria vida.
  Correu pela pista do jeito que estava. Como que para saudar uma velha amiga...
  Ao entrar na casa viu Coatch tomando um café com uma senhora um pouco mais nova.
  -Essa é Abgail- disse o técnico- ela é enfermeira e vai ficar encarregada de medir seus sinais e ficar atenta a qualquer emergência.
  -Emergência?
  Você precisa estar ciente que há riscos, as drogas que você vai usar podem fazer muito mal, e se você tiver uma reação inesperada pode até morrer. 
  Fast pensou por um segundo, mas levantou a cabeça e concordou.
  -se eu ficar mais rápido estou pronto até para dar minha vida.
  -Os treinos vão começar todos os dias de manhã bem cedo, antes do sol nascer. Para aproveitar sua produção natural de hormônios, você vai dormir todos os dia as oito e meia da noite.
  -Não há nada pra se fazer por aqui mesmo- respondeu.
  E assim começaram uma rotina de treinos e injeções. Fast sentia dor a maior parte do tempo. Quando não estava correndo, estava malhando com pesos ou recebendo agulhadas. 
Tinha que tirar sangue todos os dias para que a enfermeira o examinasse. Ela também havia trabalhado muito tempo em um laboratório no hospital. Tirava o sangue, levava para o laboratório improvisado na própria fazenda, e voltava com os resultados a tarde. As vezes tirava sangue duas vezes por dia.
  Os resultados ficavam cada vez mais espantosos. O corpo de Fast era uma máquina,
com todos os turbos que eram possíveis a medicina humana, ia batendo o recorde mundial quase que diariamente. E os resultados eram divulgados pela internet.
  Já tinha virado uma lenda mundial e a polícia federal tentava abafar os resultados e  capturá-lo. Mas, ninguém sabia onde ele estava. Coatch havia cuidado muito bem disso. 
  Numa tarde a enfermeira entrou na cozinha muito preocupada. Chamou o técnico e lhe deu o resultado do último exame.O clima ficou fúnebre. Chamou Fast e lhe deu a triste notícia.
  -Seu fígado está com câncer, sinto muito. 
  Fast abaixou a cabeça.
  -Podemos ir para os hospitais , mas sabiamos todo o tempo que este era um dos riscos do doping. Se estiver espalhado como pensamos, por esses exames, não tem como reverter. O que quer fazer?
  Sem pestanejar soltou de pronto a resposta obstinada:
  -Quero correr.
  Incrivelmente parecia que após receber a notícia o corpo de Fast simplesmente se fortaleceu. Passou a correr naquela semana mais que em todas as outras. E o recorde a ficar cada vez mais baixo. Centésimo por centésimo de segundo. Parecia que ele queria se despedir com velocidade do mundo.
  Finalmente a polícia havia descoberto onde estava.
  Enquanto corria sua última jarda, ele via novamente a pista trêmula, sentia a tensão que agora estourava seus músculos.
  As sirenes ao longe , denunciavam a aproximação dos policiais.
  Ao cruzar a linha e ter seu tempo marcado, mais um recorde caía, mas fast também.
  A enfermeira correu em sua direção, e o técnico agora o segurava em seus braços quase desfalecido.
  Sua vista turva se fixou uma última vez no cronómetro no pescoço de Coatch,
confirmando para si mesmo o recorde quebrado.
  Sorriu.
  -Divulgue o resultado, disse com muito esforço.
   Mas esvaziando o sorriso, enquanto dava seu último suspiro, olhou para o técnico e fez a pergunta que para sempre acompanharia sua história, onde quer que fosse contada:
   -será que valeu a pena?
                                                     FIM

2 comentários:

  1. Meu! Cada dia você se supera mais e mais.
    Você é um escritor e isso ninguém pode negar.
    Como é bom ler suas postagens novamente.
    Obrigada por você ser como é. Especial!.
    Amei, amei parabens bjs Heudes

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  2. http://www.youtube.com/watch?v=CMk4N6SLgGo&feature=fvsr
    e hoje descobri isso

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